Série Achados do Arquivo, da Câmara de Piracicaba, destaca a vida de Eulálio da Costa Carvalho, que atuou na Casa, e é citado no clássico ‘Paratodos’
“O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano”.
Cantor, compositor, escritor e dramaturgo, Francisco Buarque de Hollanda, ou apenas Chico Buarque, despontou na década de 1960, com o lançamento do disco “Chico Buarque de Hollanda”, em 1966, e, naquele mesmo ano, ao vencer o 2º Festival de Música Popular Brasileira com a música “A banda”.
Pelas décadas seguintes, lançou joias do cancioneiro nacional: “Quem te viu, quem te vê”, “Noite dos mascarados”, “Apesar de você”, “Construção”, “O que será (à flor da pele)”, “Olhos nos olhos”, “João e Maria”, “Cálice”, “Geni e o Zepelim”, “Vai passar”, “A volta do malandro”, “Samba do grande amor”, “Paratodos”, “Futuros amantes”, “Chão de esmeraldas”, “Sinhá”.
Da produção literária, se destacam os livros “Estorvo”, “Benjamim”, “Budapeste”, “Leite Derramado”, “O Irmão Alemão”, “Essa Gente”, “Anos de Chumbo” e “Bambino a Roma”. Escreveu as peças teatrais “Roda Viva”, “Calabar”, “Gota d’Água”, “Ópera do Malandro” e “O Grande Circo Místico”.
Essa rica e variada produção lhe rendeu diversos reconhecimentos como o “Prêmio da Música Brasileira”, “Grammy Latino”, “Prêmio Oceanos”, “Prêmio Jabuti” e “Prêmio Camões”. Destaque para este último, que é o maior da Língua Portuguesa, cujo objetivo é consagrar um autor que, pelo conjunto da obra, tenha contribuído para o enriquecimento literário e cultural do idioma.
Nascido na cidade do Rio de Janeiro-RJ, em 19 de junho, em 1944, Chico Buarque é o quarto de sete irmãos. Seu pai era Sérgio Buarque de Hollanda, sociólogo, e sua mãe, Maria Amélia Cesário Alvim, pianista.
Sua mãe, Maria Amélia, nascida em 1910, no Rio de Janeiro-RJ, era filha de Francisco Cesário de Faria Alvim e Maria do Carmo Carvalho, avós de Chico. Sua avó, Maria do Carmo, nascida em 1888, no Rio de Janeiro-RJ, era filha de Carolina Vieira Barbosa e Álvaro Augusto da Costa Carvalho, bisavós de Chico.
Seu bisavô, Álvaro Augusto da Costa Carvalho, nascido em 1865, em Piracicaba-SP, era filho de Amélia Benvinda de Almeida e Costa e Eulálio da Costa Carvalho, tataravós de Chico.
O tataravô, Eulálio da Costa Carvalho, nasceu em 1833, em Salvador-BA.
O resgate da árvore genealógica de Chico Buarque para por aqui, eis que o foco desse texto é justamente o tataravô de Chico, Eulálio.
Mas antes de falar do tataravô, um breve comentário sobre o bisavô. Álvaro Augusto da Costa Carvalho nasceu em Piracicaba, tendo sido uma figura proeminente da política nacional. Passou, durante décadas, pelos cargos de deputado estadual em São Paulo, deputado federal e senador. Tendo se oposto ao golpe de Getúlio Vargas, em 1930, foi exilado, condição na qual acabou falecendo, na Alemanha. Atualmente, uma travessa no bairro Pauliceia é denominada em homenagem ao bisavô de Chico Buarque.
Agora, o tataravô.
Eulálio da Costa Carvalho não era piracicabano de nascimento, mas teve atuação de destaque em Piracicaba. Nascido em Salvador, formou-se médico pela Faculdade de Medicina da Bahia e se instalou em Piracicaba em meados da década de 1860. Em terras piracicabanas teve forte atividade em sua profissão, tendo integrado o corpo clínico da Santa Casa de Misericórdia. Aliado ao exercício da medicina, atuou como vereador entre 1869 e 1876, tendo sido presidente da Câmara Municipal no ano de 1869.
Atualmente, no bairro Vila Rezende, em Piracicaba, uma travessa é denominada em sua memória: “Dr. Eulálio”.
Com base em documentos do Acervo Histórico da Câmara Municipal, esta edição da série “Achados do Arquivo” destaca dois momentos da atuação de Eulálio. Uma na condição de médico. Outra enquanto vereador.
– “Num tempo, página infeliz da nossa história” (Trecho da música “Vai passar”, de Chico Buarque)
Em 1867, residindo há pouco tempo na cidade, Eulálio é chamado a participar, como médico perito, de um processo judicial, cujo caso, brutal, escancara a escravidão como aspecto horrível da realidade brasileira.
O processo é sobre a escravizada Benedicta, ré no processo por, num ato de desespero extremo, assassinar, a pauladas, seus três filhos: a menina Bárbara e os meninos Joaquim e Jerônimo. A atuação de Eulálio se dá em dois momentos: no auto de corpo de delito das três crianças e também ao atestar que Benedicta estava grávida do quarto filho.
No dia 21 de janeiro de 1867, atendendo à solicitação judicial, Eulálio realizou os exames de corpo de delito nos cadáveres das três crianças.
O primeiro laudo foi o de Bárbara, “de seis anos de idade, Escrava de João Leite Ferraz de Sampaio”, no qual “deliberaram que, examinando o cadáver de Bárbara, mulata de seis anos de idade […?] mais ou menos encontraram a região da nuca e cervical posterior sido de grande […?][…?] que estende-se para os lados até as regiões […?]. A pele em geral apresenta manchas equimóticas, resultantes da decomposição cadavérica”.
Na sequência, foi feito o laudo de Joaquim, “de dois anos de idade […?] mais ou menos, pertencente a João Leite Ferraz de Sampaio”, no qual concluíram: “Examinando o cadáver de Joaquim, [preto] de dois anos de idade pouco mais ou menos, encontraram a região da nuca cervical fraturas sede de grande tumefacção […?] sematosa que estende-se para os lados até a região mastoide. A pele em geral apresenta manchas equimóticas resultantes da decomposição cadavérica”.
O terceiro cadáver examinado foi o de Jerônimo, “de quatro anos idade, escravo de João Leite Ferraz de Sampaio”, cujo laudo diz que “encontraram a região da nuca e cervical fraturas sede de grande tumefacção […?] sematosa que estende-se para os lados até a região mastoide. A pele em geral apresenta manchas equimóticas, resultantes da decomposição cadavérica e em parte das coxas e [dao ppericas o efei derme é descallado] em consequências de [flictenas] resultantes da ação de qualquer substância contundente, que […?] que […?] do segundo ao terceiro grau de […?]”.
Pouco mais de cinco meses depois, em 5 de julho, os serviços de Eulálio foram novamente requisitados. Dessa vez para atestar a gravidez de Benedicta, eis que, de acordo com a legislação da época, ela não poderia “ser julgada em acusação do crime de pena capital, senão quarenta dias depois do parto em diante”. O atestado de Eulálio é sucinto, encimado por uma autodeclaração de formação:
“Eulálio da Costa Carvalho, tem medicina pela Faculdade da Bahia.
Atesto, sob juramento, que Benedicta, escrava de João Leite Ferraz Sampaio, presa na cadeia desta cidade, acha-se em época adiantada de gravidez, que data de oito meses […?] mais ou menos. Constituição, aos 5 de julho de 1867.
Eulálio da Costa Carvalho.”
Na manhã de 23 de julho, na cadeia, Benedicta deu à luz uma menina.
No dia 10 de setembro Benedicta é condenada a “doze anos de prisão com trabalho”. Mas, como era escravizada, a pena foi comutada em “trezentos açoites” e a “trazer um ferro ao pescoço por espaço de três anos”.
Eulálio atuou, com base em sua formação médica, num processo judicial que exibiu, de forma crua, as chagas, ainda visíveis, da escravidão no Brasil. Um tema que, no futuro, seria abordado, de forma musical e literária, por seu tataraneto Chico Buarque de Hollanda.
– “Eis o malandro na praça outra vez” (Trecho da música “A volta do malandro”, de Chico Buarque)
Da atuação de Eulálio como vereador, destaca-se o acontecido no mês de dezembro, em 1874, durante sessões ordinárias da Câmara.
Por aqueles dias chegou na cidade um sujeito de nome Carlos que, se dizendo médico, se prestava ao exercício da profissão, sem, no entanto, ter qualquer comprovação de que era habilitado a clinicar. O dublê de médico consultava pacientes na cidade, dava-lhes o diagnóstico e prescrevia tratamentos.
A curandeirice do “Doutor Carlos” causou preocupação no vereador – e médico – Eulálio. Ata da sessão ordinária da Câmara registra que, pouco depois das 11h00 da manhã da terça-feira, 08 de dezembro, “pelo vereador Dr. Eulálio foi indicado que, pelo senhor presidente, fosse exigido o diploma de médico do estrangeiro ultimamente chegado a esta cidade, que se presta ao exercício da clínica médica, de nome Carlos de tal, e que, uma vez não apresentado o dito diploma, ou, sendo apresentado, não contendo as formalidades legais, empregassem os meios para que lhe fosse proibido dito exercício, conforme as leis do país, visto como ao município de Constituição não era, por forma alguma, conveniente que charlatães ocupassem o lugar que pudesse sê-lo por médicos habilitados, conforme a lei. E, sendo aprovada esta indicação, o senhor presidente ordenasse a mim, secretário, que me entendesse com o dito Carlos, e comunicasse-lhe a necessidade de apresentar seu título a esta Câmara na sessão do dia 13 do corrente mês”.
A indicação foi aprovada.
Na sessão seguinte, 13 de dezembro, como Carlos, o charlatão, não apresentasse seu diploma, o vereador Eulálio voltou a se manifestar. A ata registra que ele “de novo […] indicou que se exigisse o título do estrangeiro Carlos de tal”. Não há registro posterior dando conta se o embusteiro apresentou o diploma ou se, sabendo-se descoberto pelas autoridades, partiu para ludibriar habitantes de outra cidade.
A atuação de Eulálio, nesse caso, se deu num tema que ainda se faz presente no país: a “esperteza”, no mau sentido da palavra, que denota uma certa vigarice no jeito de agir. Essa malandragem é outro tema que, futuramente, também seria abordado em prosa e verso por Chico Buarque.
Paratodos
Eulálio da Costa Carvalho e Chico Buarque de Hollanda. Duas pessoas de uma mesma família, separados por gerações, mas unidos, de maneiras diferentes – Eulálio, ao vivenciar; Chico, ao tratar em sua arte – por temas que, infelizmente, perpassam a história brasileira. Chico não conheceu Eulálio, mas referenciou e reverenciou esse parentesco ao citá-lo na música “Paratodos”. Na letra da canção, quando Chico cita “Meu tataravô, baiano”, é a Eulálio que ele se refere. O tataravô de Chico, que era baiano, também foi vereador e presidente da Câmara Municipal de Piracicaba.
Foto: Reprodução/Câmara de Piracicaba